A gente não reflete sobre aquilo que já se tornou tão familiar a ponto de parecer inquestionável, de tal modo que me surpreendi com a longeva obviedade do engano.
“Ano” é um sufixo utilizado para formar palavras que designam cidadania, tais como boliviano, americano, peruano, sul-africano ou italiano, enquanto “eiro” é sufixo que designa profissão, como padeiro, sorveteiro, empreiteiro, trambiqueiro ou engenheiro.
Assim sendo, somos brasileiros ou brasilianos?
Nesse sentido, o vocábulo “brasileiro” serviria para designar uma profissão, e estaria ligado às nossas mais remotas origens, dos colonizadores portugueses que para cá vinham não com o intuito de formar uma nação, mas de extrair nossas riquezas, levando embora o pau-Brasil, o ouro, a prata, a inocência dos incautos índios e o sexo das negras escravas de grossas coxas. A provocação não é original tampouco recente, foi formulada pelo consultor de empresas Stephen Kanitz num artigo de 2007, mas como continua atual, me atrevo a ressuscitá-la, nesses tempos agitados em que tantos propõem a reinvenção do Brasil.
Somos brasileiros, que fazem do país uma profissão e dela extraem o tanto quanto podem, ou somos brasilianos, filhos deste solo de mãe gentil, que tentam com o suor do dia a dia construir uma verdadeira nação?
O quanto de nossos ancestrais instintos de colonizadores extrativistas ainda sobrevive em nós, sem que percebamos? Extraímos ou geramos riquezas?
Por que nossos vizinhos Chile, Uruguai e Argentina têm um Índice de Desenvolvimento Humano tão melhor que o nosso? Por que a Austrália, que nasceu como colônia penal, é tão segura e o Brasil tão violento? Por que os japoneses estão sempre se recompondo de seus tsunamis, terremotos e Hiroshimas e a gente não consegue juntar os cacos de nosso semi-milenar quebra-cabeças?
De onde vem a nossa permissividade com tudo que é oblíquo e duvidoso?
E assim o Brasil vai descendo a ladeira: dando jeitinhos, subornando o guarda, se recusando a fazer o bafômetro, pegando atestado pra faltar ao trabalho, parando em fila dupla e ocupando a vaga do deficiente físico. Vendendo a
alma, comprando votos e penhorando o amanhã.
Tratamos o dinheiro de todos com se fosse de ninguém. Reclamamos da corrupção e meia hora depois pedi-
mos desconto por um serviço sem nota fiscal (qual a diferença entre subtrair dinheiro do cofre público e nem deixar
que ele entre no cofre?). Queremos um governo que resolva tudo para que a gente não tenha que se preocupar com nada. Todos querem sobreviver do Estado sem perceber que é o Estado que sobrevive do suor de todos. Queremos
um Estado de Direito mas recusamo-nos a cumprir TODA a carga de deveres que faz a engrenagem da democracia funcionar. Quantos super heróis ainda teremos que sufragar para nos salvar de nós mesmos?
Então somos mesmo brasileiros e não brasilianos. Estrangeiros em solo pátrio. Mandemos nossos filhos estudar na Inglaterra, nossas economias passear em Cayman e nossos poodles correr num quintal gramado em Miami Beach.
Pelo menos para os que podem se dar a esses luxos. É chato ter que ser chato, mas o fato é que somos responsáveis pela Educação, pela Economia e pela Violência. E se você acha que tem não tem participação ou responsabilidade em nada disso é porque realmente não entende o conceito de nação. Escola nenhuma vai corrigir os desvios que seu filho aprendeu em casa, assim como não vamos construir um país melhor por decreto legislativo.
Padecemos ainda de uma espécie de infantilismo cívico que guarda forte relação com os nossos putrefeitos índices educacionais e de inanição política: queremos mais direitos com menos deveres, uma política decente mas que não exija o nosso envolvimento, levando vantagem em tudo, numa equação de soma negativa. Uma ficção pueril que insistimos acreditar possível. O que seremos pelos próximos anos? Exploradores ou cidadãos? Brasileiros ou brasilianos?
Talvez seja mesmo a hora de reinventar o Brasil, começando por expurgar o nosso indelével traço brasileiro, substituindo-o por uma atitude verdadeiramente brasilianista, em nome da tão maltratada cidadania e do nosso
ainda por construir conceito de Nação.
Texto publicado também na Revista Pimenta Report Edição 02 – Junho/2018.